terça-feira, 24 de agosto de 2010

Notas para um possível Currículo de Boteco (Parte II)

Sem música, uma aula seria um erro!

Claro que Nietzsche está falando de Wagner, e da vida. Mas pedimos licença para o bigodudo mal-encarado e dizemos que estamos em pleno século XXI. Claro que a música clássica pode sempre acrescentar, mas não é por ai que deveríamos começar. “Créu na música erudita”, poderia algum adolescente gritar enquanto faz aqueles movimentos comparados a de uma máquina de triturar alguma coisa.

No ensino de História, o uso de música deveria ser uma lei imutável e universal. Como nosso tosco personagem acima, creio que ao invés dos tediosos livros didáticos (comparando-os com a TV no bar), a música deveria estar sempre dando som ao ambiente e ser usada também para que os próprios conteúdos sejam desenvolvidos. Sim, conteúdos! Não podemos entender o uso de música como algo feito somente para divertir e dar prazer aos estudantes. Estamos tentando pensar no Currículo de Boteco, mas ele tem limites. Assim como o álcool e os cigarros não podem ser permitidos, devido às restrições jurídico-institucionais, o uso da música deve ser entendido como um suporte para uma atividade científica.

Isto que foi dito também não pressupõe que não exista o riso, a conversa, as idas ao banheiro, típicas do bar. Em muitas vezes, parece-me (sem nenhuma constatação Científica, com “C” maiúsculo) que as aulas têm este caráter no sentido negativo, afinal, podemos ter um professor repleto de metodologias e planejamentos bem articulados e respeitosos, mas no momento em que o procedimento é necessário, a improvisação é necessária (constantes em sala de aula) se decai para o senso-comum, para os preconceitos, para as opiniões prontas. Isto, claro, não é previsto. Porque não, então, tentar potencializar estes momentos que muitas vezes podem ser mais importantes do que o próprio conteúdo?

Pensar em um Currículo de Boteco, da maneira como estou tentando fazer aqui, não significa neste momento criar uma grade fechada. Na verdade, a idéia é a de agrupar estes enunciados - na forma de músicas dispersas - em novas categorias criadas por mim, de forma que possam ser dispersos pelo ano letivo configuradas em atividades. Estas categorias, por sua vez, serão criadas a partir de conceitos considerados importantes dentro dos conteúdos de História, respeitando uma ordem e um encadeamento considerados “de respeito” (pelos pais, professores, coordenadores, presidente da república, e, pasmem, pelos alunos que são sempre os mais difíceis de agradar e convencer).

Tomemos como exemplo, duas canções que a princípio tem um certo distanciamento entre si. Batedores, do grupo que pertence ao movimento manguebeat de Recife nos anos 90, Mundo Livre S/A; e Disneylândia, musica da banda paulista típica representante dos do rock brasileiro dos anos 80, Titãs.

Os computadores das mega-corporações trabalham full-time.

Seus altos executivos circulam num mundo de fanatismo e
devoção, venerando o onipresente deus Naiq

Mesmo quando deveriam estar de folga, eles não param de
pesquisar.

Investigando as ruas, buscando novas pistas.

Há décadas eles vêm comprando e subornando
congressistas, democratas, modernos, liberais,
patrocinando campanhas presidenciais, financiando
planos de governo, armando, tramando novos consórcios
globais que assumem rapidamente o controle de imensos
e estratégicos patrimônios estatais - enfim,
conquistando pequenos, médios e grandes mercados
emergentes em todos os continentes, aquilo que antes
chamávamos de países. ..

(Batedores, MUNDO LIVRE S/A)

Filho de imigrantes russos casados na Argentina
Com uma pintora judia,
Casou-se pela segunda vez
Com uma princesa africana no México

Música hindu contrabandeada por ciganos poloneses faz sucesso
No interior da Bolívia zebras africanas
E cangurus australianos no zoológico de Londres.
Múmias egípcias e artefatos Incas no museu de Nova York

Lanternas japonesas e chicletes americanos
Nos bazares coreanos de São Paulo.
Imagens de um vulcão nas Filipinas
Passam na rede de televisão em Moçambique...

(Disneylândia. TITÃS)

Estas duas músicas estariam agrupadas, e fariam parte de uma atividade em sala de aula, sob o conceito de globalização, relacionadas assim, com outros aspectos que este conteúdo exige. Ouvir a música, leitura das letras, aula expositiva e outras atividades como textos complementares e questionários podem servir para aulas que não exigem assim muito investimento em matérias e “pirotecnias” tão difíceis de se ter à disposição nas escolas.

Existem outras possibilidades: Os próprios artistas apresentados podem ser objeto de conhecimento na sala de aula. Tomando novamente o caso do manguebeat, este movimento foi muito importante culturalmente e politicamente dentro do contexto de Recife. Estas questões muitas vezes passam em branco para os estudantes, e podem servir para apresentar-lhes contextos culturais diferentes e que aumentem suas possibilidades de escolha. Ou não, claro. A questão do som também é importante, pois existem múltiplos estilos musicas e entrecruzamentos entre eles, isto também tem uma historicidade, o que pode ser um gatilho para despertar um interesse pela História. Repito novamente, ou não, pois são apenas possibilidades que podem dar um “arejamento” ao planejamento, já que entendemos que um planejamento nunca segue a risca o que foi previsto quando colocado em prática.

Um dos desdobramentos possíveis no uso da música nas aulas de História do Currículo de Boteco são as atividades de comparação. Não no sentido de mais ou menos, pior ou melhor (se realmente for possível isto acontecer de forma plena), mas ligado à idéia de sincronia. A partir de um fragmento, um contexto colocado ao lado do outro, podemos ressaltar as diferenças que são históricas. Pensemos, para isto, nas comédias antigas de Aristófanes, que traziam sempre elementos do contexto da polis, como as instituições políticas, os grupos sociais e situações que só poderiam ser vividas naquele tempo. A partir de seus textos, vemos um critica a sociedade daquele tempo a partir do seu ponto de vista, que, muitas vezes, era o de alguém que defendia a aristocracia e valores antigos que estariam “perdidos”. Coloquemos Aristófanes ao lado grupo de Hip-Hop paulista contemporâneo Racionais MC’s. Dentro do seu contexto histórico, da urbanização, da marginalização, do preconceito racial, etc, a banda faz uma crítica social também a partir do seu ponto de vista, o da periferia de uma metrópole.

Assim, a música no ensino de História do Currículo de Boteco não deve ser pensada por si mesmo. Deve estar articulada com propostas de ensino que muitas vezes se baseiam em princípios até “tradicionais”, como a aula expositiva e a leitura de textos. Mas, ao mesmo tempo, abre uma quantidade enorme de possibilidades que não podem ser listadas neste trabalho, tanto devido ao tempo quanto ao caráter ainda inicial desta proposta. Talvez, depois de algumas garrafas de vinho e um pouco de trilha sonora, as propostas de atividades podem ir aparecendo de uma forma mais fluída e livre. O que, quando temos que escrever um trabalho para uma disciplina de ensino superior, constantemente não nos é permitido devido a certas limitações institucionais.

Um comentário:

  1. muito boa a tua síntese diego. com todo esse trago vc é o nosso pilavares, e com todas essas referências vc é o nosso manu chao. claro q só no buteco.

    ian

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