terça-feira, 24 de agosto de 2010

Notas para um possível Currículo de Boteco (Parte II)

Sem música, uma aula seria um erro!

Claro que Nietzsche está falando de Wagner, e da vida. Mas pedimos licença para o bigodudo mal-encarado e dizemos que estamos em pleno século XXI. Claro que a música clássica pode sempre acrescentar, mas não é por ai que deveríamos começar. “Créu na música erudita”, poderia algum adolescente gritar enquanto faz aqueles movimentos comparados a de uma máquina de triturar alguma coisa.

No ensino de História, o uso de música deveria ser uma lei imutável e universal. Como nosso tosco personagem acima, creio que ao invés dos tediosos livros didáticos (comparando-os com a TV no bar), a música deveria estar sempre dando som ao ambiente e ser usada também para que os próprios conteúdos sejam desenvolvidos. Sim, conteúdos! Não podemos entender o uso de música como algo feito somente para divertir e dar prazer aos estudantes. Estamos tentando pensar no Currículo de Boteco, mas ele tem limites. Assim como o álcool e os cigarros não podem ser permitidos, devido às restrições jurídico-institucionais, o uso da música deve ser entendido como um suporte para uma atividade científica.

Isto que foi dito também não pressupõe que não exista o riso, a conversa, as idas ao banheiro, típicas do bar. Em muitas vezes, parece-me (sem nenhuma constatação Científica, com “C” maiúsculo) que as aulas têm este caráter no sentido negativo, afinal, podemos ter um professor repleto de metodologias e planejamentos bem articulados e respeitosos, mas no momento em que o procedimento é necessário, a improvisação é necessária (constantes em sala de aula) se decai para o senso-comum, para os preconceitos, para as opiniões prontas. Isto, claro, não é previsto. Porque não, então, tentar potencializar estes momentos que muitas vezes podem ser mais importantes do que o próprio conteúdo?

Pensar em um Currículo de Boteco, da maneira como estou tentando fazer aqui, não significa neste momento criar uma grade fechada. Na verdade, a idéia é a de agrupar estes enunciados - na forma de músicas dispersas - em novas categorias criadas por mim, de forma que possam ser dispersos pelo ano letivo configuradas em atividades. Estas categorias, por sua vez, serão criadas a partir de conceitos considerados importantes dentro dos conteúdos de História, respeitando uma ordem e um encadeamento considerados “de respeito” (pelos pais, professores, coordenadores, presidente da república, e, pasmem, pelos alunos que são sempre os mais difíceis de agradar e convencer).

Tomemos como exemplo, duas canções que a princípio tem um certo distanciamento entre si. Batedores, do grupo que pertence ao movimento manguebeat de Recife nos anos 90, Mundo Livre S/A; e Disneylândia, musica da banda paulista típica representante dos do rock brasileiro dos anos 80, Titãs.

Os computadores das mega-corporações trabalham full-time.

Seus altos executivos circulam num mundo de fanatismo e
devoção, venerando o onipresente deus Naiq

Mesmo quando deveriam estar de folga, eles não param de
pesquisar.

Investigando as ruas, buscando novas pistas.

Há décadas eles vêm comprando e subornando
congressistas, democratas, modernos, liberais,
patrocinando campanhas presidenciais, financiando
planos de governo, armando, tramando novos consórcios
globais que assumem rapidamente o controle de imensos
e estratégicos patrimônios estatais - enfim,
conquistando pequenos, médios e grandes mercados
emergentes em todos os continentes, aquilo que antes
chamávamos de países. ..

(Batedores, MUNDO LIVRE S/A)

Filho de imigrantes russos casados na Argentina
Com uma pintora judia,
Casou-se pela segunda vez
Com uma princesa africana no México

Música hindu contrabandeada por ciganos poloneses faz sucesso
No interior da Bolívia zebras africanas
E cangurus australianos no zoológico de Londres.
Múmias egípcias e artefatos Incas no museu de Nova York

Lanternas japonesas e chicletes americanos
Nos bazares coreanos de São Paulo.
Imagens de um vulcão nas Filipinas
Passam na rede de televisão em Moçambique...

(Disneylândia. TITÃS)

Estas duas músicas estariam agrupadas, e fariam parte de uma atividade em sala de aula, sob o conceito de globalização, relacionadas assim, com outros aspectos que este conteúdo exige. Ouvir a música, leitura das letras, aula expositiva e outras atividades como textos complementares e questionários podem servir para aulas que não exigem assim muito investimento em matérias e “pirotecnias” tão difíceis de se ter à disposição nas escolas.

Existem outras possibilidades: Os próprios artistas apresentados podem ser objeto de conhecimento na sala de aula. Tomando novamente o caso do manguebeat, este movimento foi muito importante culturalmente e politicamente dentro do contexto de Recife. Estas questões muitas vezes passam em branco para os estudantes, e podem servir para apresentar-lhes contextos culturais diferentes e que aumentem suas possibilidades de escolha. Ou não, claro. A questão do som também é importante, pois existem múltiplos estilos musicas e entrecruzamentos entre eles, isto também tem uma historicidade, o que pode ser um gatilho para despertar um interesse pela História. Repito novamente, ou não, pois são apenas possibilidades que podem dar um “arejamento” ao planejamento, já que entendemos que um planejamento nunca segue a risca o que foi previsto quando colocado em prática.

Um dos desdobramentos possíveis no uso da música nas aulas de História do Currículo de Boteco são as atividades de comparação. Não no sentido de mais ou menos, pior ou melhor (se realmente for possível isto acontecer de forma plena), mas ligado à idéia de sincronia. A partir de um fragmento, um contexto colocado ao lado do outro, podemos ressaltar as diferenças que são históricas. Pensemos, para isto, nas comédias antigas de Aristófanes, que traziam sempre elementos do contexto da polis, como as instituições políticas, os grupos sociais e situações que só poderiam ser vividas naquele tempo. A partir de seus textos, vemos um critica a sociedade daquele tempo a partir do seu ponto de vista, que, muitas vezes, era o de alguém que defendia a aristocracia e valores antigos que estariam “perdidos”. Coloquemos Aristófanes ao lado grupo de Hip-Hop paulista contemporâneo Racionais MC’s. Dentro do seu contexto histórico, da urbanização, da marginalização, do preconceito racial, etc, a banda faz uma crítica social também a partir do seu ponto de vista, o da periferia de uma metrópole.

Assim, a música no ensino de História do Currículo de Boteco não deve ser pensada por si mesmo. Deve estar articulada com propostas de ensino que muitas vezes se baseiam em princípios até “tradicionais”, como a aula expositiva e a leitura de textos. Mas, ao mesmo tempo, abre uma quantidade enorme de possibilidades que não podem ser listadas neste trabalho, tanto devido ao tempo quanto ao caráter ainda inicial desta proposta. Talvez, depois de algumas garrafas de vinho e um pouco de trilha sonora, as propostas de atividades podem ir aparecendo de uma forma mais fluída e livre. O que, quando temos que escrever um trabalho para uma disciplina de ensino superior, constantemente não nos é permitido devido a certas limitações institucionais.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Notas para um possível Currículo de Boteco (Parte I)

Ele está sentado em frente a um sujeito ainda mais feio do que ele. A mão em que segura o cigarro, entre seus dedos amarelados de nicotina, procura, sem o auxílio dos olhos, o cinzeiro já abarrotado por bitucas. Quando o encontra, a cinza acaba se espalhando pelas bordas, “droga”, pensou, “não precisava ter me preocupado com a limpeza, já que esta espelunca não tem nenhum garçom que troque esse maldito cinzeiro e muito menos deve ter alguém que varra todas essas cinzas acumuladas por gerações de bebuns, jogadores e desajustados que passaram por aqui”. Decide deixar o cigarro na boca mesmo, pois agora precisa da mão para alcançar o copo. A outra mão, à esquerda, está permanentemente segurando as cartas que definem se ele irá sair dali alguns reais mais pobre ou mais rico. Agora, a sua delicada operação, para quem já enfileirou mais copos goela abaixo do que um policial veterano revistou negros em toda sua carreira, chegou a um dilema. Ou tenta novamente colocar o cigarro naquele cinzeiro em que o equilíbrio depende de um calculo minucioso e bebe sua cerveja sem tirar os olhos do cinzeiro. Isto fará, consequentemente, com que tire os olhos das cartas e do sujeito mais feio que ele. Ou tenta beber com o cigarro no canto da boca, o que evitaria a difícil tarefa do cinzeiro, o descuido das cartas e do sujeito mais feio que ele que poderiam ser fatais, mas que - ao mesmo tempo - poderia acarretar em uma queimadura e a queda do cigarro de sua boca no seu colo ou, pior, dentro do copo. Opta então, por sabe-se lá qual argumentação, em largar as cartas em cima da mesa, tirar o cigarro da boca com a mesma mão e beber com a mão direita. No meio tempo em que faz isto o sujeito mais feio que ele bate. “Um real a menos no meu bolso”, pensa. O descuido é sempre um dos piores problemas nesta sociedade capitalista, assim como a direita, nem que seja a mão.

“Que tipo de bar é este em que a televisão está ligada ao invés da música? Coloquem qualquer música! Pode ser um Bruno e Marrone mesmo! Os bares da literatura não eram assim!” Talvez esteja lendo de mais, ou assistindo televisão de menos. Enfim, ouviu falar que no sul dos Estados Unidos, em uma época passada, existiam cartazes que diziam: “Proibido discutir política e religião!” “Por que será que existia esta proibição tão severa?” Não que ele achasse os Estados Unidos um país onde gostaria de morar ou um exemplo de cidadania que fazia com que as pessoas se matassem por causa de tais assuntos. Só achou curioso. Lembrou da escola. Na verdade não lembrou, pois tentou se transportar para suas aulas de História ou qualquer disciplina onde pudesse discutir tais coisas, não conseguia se recordar de nada.

“Maldição!” Pensou. “Aos meus 39 anos tenho sérios problemas com álcool, jogo e relações sociais. Estou ficando cansado dessa vida de Boteco!” Não entende muito bem porque quando se sentia tão frustrado e derrotado lembrava da escola. Talvez por causa deste discurso salvacionista em que sempre envolviam a educação: “Com educação teremos tudo! Mais cidadania, mais saúde,mais distribuição de renda...” Este é um discurso tão comum que chegou a acreditar nele. Ele estudou até o fim, se formou, tudo direitinho. Ás vezes esquece em que trabalha, mas isto não vem ao caso agora. Hoje, a sua preocupação com cidadania estava se resumindo a isto: dilemas entre as cartas, o copo, o cigarro, a possível vitória do sujeito mais feio que ele, a injustiça da TV ligada ao invés da música. Cidadania de Boteco. A sua saúde esta exatamente dentro dos padrões dos demais ao seu redor e do estilo de vida que leva. Saúde de Boteco. O seu dinheiro transita entre o que recebe no seu trabalho miserável, o que paga para o dono do bar tão pobre quanto ele e aos outros jogadores como o sujeito mais feio que ele. Distribuição de renda de Boteco.

Mas, no fim destas contas, não achava sua vida totalmente ruim. A não ser que estivesse preso àqueles modelos daquela maldita TV que estava ligada ao invés da música. Muitas coisas o orgulhavam, como uma sensação de estar por fora, de se sentir vivo o suficiente para criticar todas aquelas pessoas que tinham que sustentar sua posição de sucesso na sociedade, mesmo que, às vezes, isto para ele custasse uma amargura comparável a de Jesus Cristo. Isto trouxe para ele alguns pensamentos: “Será que estou destinado a me sacrificar pela humanidade de tanto beber, fumar e jogar?” Certamente não, deu um riso solitário, como quase todos. “Mas, e se for a partir da educação esta tarefa de salvar o mundo? Como todos estes discursos reivindicam?” Certamente não acreditava nisto também, mas a idéia lhe pareceu divertida, pensar em uma educação a partir do que esta vivendo agora, nesse submundo, nesta, como disse Bukowski, “civilização que nunca viu em nenhum dos livros escolares”. Se aqueles políticos profissionais podem, e, se sabemos que estas formas de ver o mundo sempre são parciais e nunca universais, por que um alguém como ele também não pode? Pelo menos tentar. A começar, claro, pela música que está faltando ali...

domingo, 15 de agosto de 2010

Preencher os espaços e controlar o tempo (ou ser um empacotador aos 16 anos)

Colocar mercadorias dentro de uma sacola. Não se deixem enganar pelas ideologias dominantes, temos que romper com as aparências, afinal, esta tarefa não é tão simples como se mostra a um observador desatento. Cuidado para não amassar o pão! Não misture o guisado com o sabonete! Este trabalho se refere mais a preencher espaços. Duas latas de azeite casam muito bem com uma garrafa de refrigerante, confere uma certa simetria à sacola do supermercado. Mas cuidado! Deve-se planejar rigorosamente tanto o preenchimento estético e utilitário deste recipiente (se o universo é composto em sua maioria por espaços vazios, uma sacolinha de supermercado não), quanto à percepção de tempo. Afinal, se as mercadorias se acumulam no balcão do caixa às 19 horas de uma sexta-feira teremos certamente um problema à vista (uma sensação parecida com a do primeiro marinheiro que avistou o iceberg). Percepção de espaço e ritmo, eis as primeiras aprendizagens da minha vida profissional.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Rosa-sei-lá-o-que

Ela até que era uma mulher bonita. Talvez não tenha dado sorte com as coisas que tem que vestir. Aquela bermuda rosa-sei-lá-o-que, afinal, não se sabe se a cor clareada é por estar desbotada e gasta ou se é esdrúxula de nascença mesmo devido a um defeito em alguma máquina chinesa que a fez. Mas enfim, ela era de certa forma bonita. A bermuda não, mas se buscarmos o lado bom da vida como os profetas contemporâneos adoram anunciar para encher mais seus bolsos, a bermuda traz alguma coisa de boa. Acentua as curvas, talvez por algum defeito na costura, sei lá, mas parece que aquele modelo não é 37, nem 38 e nem uma das quase infinitas possibilidades entre os dois: ela foi feita para aquela pessoa. Enfim, imaginando uma imagem em preto e branco podemos nos vislumbrar com uma cena de um cinema amador, mas belíssimo.

Não é só da bermuda que devemos falar, derivada de uma questão de classe. Temos algo de biológico no ar. Não somente pelas curvas que se acentuam (resultado não só da biologia, mas de exercícios que mais adiante comentaremos), mas pelo fato da genética. Antigamente poderíamos lidar com questões de linhagem de sangue, hoje podemos nos contentar com a genética. Não se assustem, não é uma questão de clonagem, afinal, só a clonariam se fosse para encher uma fábrica nos cargos mais baixos, mas para este problema temos a sagrada robótica. É a roleta dos genes mesmo. Nasceu ali, e não na família daquele que defeca opiniões sobre a pobreza nos maiores jornais do país. Não sejamos injustos também, este nascimento, neste lugar, neste tempo, pode não ser o pior destino, mas que poderia ser melhor, isso poderia.

Ela vive a vida. Dá um jeito. Este corpo meio cor de cuia com algumas acentuações também causa problemas. As pessoas podem ser cruéis. Algumas delas muitas vezes se colocam como bons samaritanos dignos de uma honra mafiosa quando outras pessoas que tem aquilo entre as pernas estão em uma situação delicada. Ela chegou, já, há muitas vezes se culpar por ter nascido com isto. Pesado, assunto pesado. Mas é a vida, se toca em frente.

Não teríamos como pensar nela sem perceber o delicado equilibrio que há no seu dia-a-dia. Sim, equilíbrio. Falta isto agora, falta aquilo depois. O malabarismo não termina só ai. O dia inteiro é uma oscilação: entre os gritos, choros e risadas. Deslocamento também de espaço. A cidade é mais pequena se comparamos com um estudante que vai até a sala de aula, volta para casa e se afoga nos livros. O Equilíbrio pode se dar, então, quando se tem um espaço para respirar: daqui a meia hora vai surgir aquilo. E se espera. Por incrível que pareça todo este fluxo da rotina se dá mais por estática do que por qualquer outra coisa. Dor nas pernas, por caminhar e por esperar de pé.

E tem aquele cara. Gritaríamos “Jesus Cristo!” se ele ainda estivesse na moda. Ele (não Jesus, o outro) é um dos motivos do porque acreditamos que vida não tem nenhum sentido. Ele passa as horas ali, acocado como um macaco velho, lendo as notícias de esporte em jornais de dias que não fazem nenhuma diferença. Não esperando como ela, por soluções que visam manter o equilíbrio, mas simplesmente por existir como uma massa de carne cheia de pelos que solta um liquido denso pelos poros e tem resquícios das evacuações corporais pelos panos que são muito piores que a bermuda rosa-sei-lá-o-que. Simplesmente não da pra entender porque a distancia física entre os dois durante suas vidas é pequena. Dividir os bens? Só se fossem bens da falta que tudo faz. Sexo? Já comentamos sobre as curvas. Chantagem? Por favor,isto requer um pouco de inteligência,e a única coisa que esse cara faz é ler sobre esportes.

Em alguns dias, a situação ficava mais feia do que o de costume. Exatamente nestes momentos que este relacionamento ganhava voz. Não algo no sentido de um canto lírico, mas entonações bem mais ondulatórias do que aquilo que sai das fendas das placas tectônicas. Ela dizia que ele não fazia nada, ele só sabia dizer que ela dizia coisas demais (afinal, como mais ele pode se defender? O cara lê páginas de esporte nos jornais). Todo este rancor, a única maneira em que o casal criava nomes àquilo que estavam fazendo juntos, mostrava sua face em forma de cobranças vorazes; do dito e o não dito; do feito, do não feito e o a ser feito; daquilo que guardamos mas que nunca achamos ser o momento certo de mostrar, e que vem à tona justamente quando esquecemos que estava lá.

E o confronto terminava ai: o retorno a um silêncio pacífico que só era cortado pela indisposição dela em prosseguir, pela falta de capacidade dele em se preocupar e pela confusão da cidade. Ela de braços cruzados, ele acocado. E a cidade ali, como um cenário passivo neste ponto de vista. Dentro desse mundo dos dois, e após tanto tempo, uma música soava dentro da cabeça dela, e de repente ela não ouvia mais os ruídos, não percebia mais os olhares estranhos das pessoas. Não sentia mais toda a indiferença e hostilidade (se é que existe, neste caso, como diferenciar um do outro). Assim como era invisível a tudo isto a seu redor, pagou na mesma moeda.

Logo depois, esta música passava a ter letra, e nestas vozes se criavam personagens, e estas personagens criavam cenários. Engraçado, mas toda esta composição era muito parecida com aquele mundo que girava, tão agressivo e indiferente, ao seu redor. E toda esta enorme orquestra, pouco a pouco, construía um roteiro de uma repetição. Aquilo que ela conhecia como realidade se duplicou na sua imaginação. A fuga tornando-se prisão. Ela abriu novamente os olhos e alguém estava sua frente, uma senhora simpática com dificuldade para andar que queria comprar uma das antenas de TV. Ela respirou fundo e ouviu novamente todos os sons da cidade, percebeu todos os olhares, sentiu todo os cheiros (inclusive aquele que emanava do líquido denso que sai pelos poros daquele cara acocado). A sua bermuda rosa-sei-lá-o-que estava um pouco mais desfiada. Esta era sua vida. Mais uma vez que ainda não foi desta vez que enlouqueceu.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Lendo o tal Nietzsche

“- Assim como atualmente um leitor não lê todas as palavras (e muito menos as sílabas) de uma página – em vinte palavras ele escolhe uma cinco ao acaso, “adivinhando” o sentido que provavelmente lhes corresponde -, tampouco enxergamos uma árvore de modo exato e completo, com seus galhos, folhas, cor e figura; é bem mais fácil para nós imaginar aproximadamente uma árvore. Mesmo nas vivências mais incomuns agimos assim: fantasiamos a maior parte da vivência e dificilmente somos capazes de não contemplar como “inventores” de algum evento. Tudo isso quer dizer que nós somos, até a medula e desde o começo – habituados a mentir. Ou, para expressá-lo de modo mais virtuoso e hipócrita, em suma, mais agradável: somos muito mais artistas do que pensamos. – Numa conversa animada, com freqüência vejo tão nítido e bem delineado o rosto da pessoa com quem falo, segundo o pensamento que ela exprime, ou que acredito ter evocado nela, que esse grau de nitidez ultrapassa em muito a força de minha visão – então a sutileza no jogo de músculos e na expressão dos olhos deve ter sido inventada por mim. Provavelmente a pessoa fazia outra cara, ou talvez nenhuma.”

Nietzsche. Além do bem e do mal. Aforismo 192.

Não pretendo entrar na questão da crítica à modernidade alicerçada por Nietzsche e valorizada mas do que nunca, me parece, atualmente. O que em trechos como este chamam a minha atenção está em seu caráter de inspiração e potencia que ele pode despertar.

Seja na área que for, na educação, na história, na borracharia, acredito que colocamos em prática esta capacidade inventiva sugerida pelo bigodudo. Muitas vezes queremos negá-la, amordaçá-la ou mascará-la de várias formas através dos nossos métodos, da nossa seriedade, da nossa preocupação. Outras podemos passar anos a fio não percebendo que ela está ali, agindo ou implorando para tal.

Pensemos no amor. Sabemos hoje, depois de tanto conhecimento acumulado, de todo um legado de homens que sempre se preocuparam muito mais com a humanidade do que com suas próprias cuecas, que o amor não existe. Não existe por si só, pode ser só um contrato para o acumulo de bens ou divisão da falta, pode ser a maneira mais simples de satisfazer necessidades biológicas sem recorrermos toda vez aos rituais culturais que podem ser longos (Bukowski já diria que ás vez é como escalar uma montanha), pode ser por alguma questão psicológica ainda não bem resolvida (não entendo muito sobre o assunto), como a busca pela mãe ou o pai, pelo pênis da mãe ou o útero do pai, algo assim.

Enfim, pode ser tudo isso e mais muitas coisas que toda a vontade de saber produziu ao longo do progresso da civilização (aposto que as mulheres na pré-história não eram presas por mostrarem os seios em público e nem que isto pudesse provocar um aumento nas estatísticas de estupros). A questão é que nós inventamos o amor. Sim, ele é uma produção da nossa cabeça e não existe pairando por aí através de um anjinho sem pinto que atira flecha nas pessoas. Mas, isto significa que não existe? Isto não pode significar justamente que estamos dando toda uma cor e significado para nossas vidas que não tem sentido nenhum (isto é fato, a vida não tem sentido, ou, como diria Raul, “eu sei que a vida não é uma resposta”). Isto não significa que estamos sendo artistas e criando um sentimento que produz manifestações, inclusive, biologicamente? Eu não sei de muita coisa, mas isto, mesmo que das maneiras mais clichês que existem, pode ajudar a ultrapassarmos a clássica dicotomia natureza-cultura de uma maneira muito singela, como um abraço, um plano (mesmo que nunca colocado em prática), uma briga, uma trepada daquelas... Às vezes pode bastar que potencializemos esta capacidade de “mentir”, de “artistar” a realidade.

Mas, sejamos justos. Vamos olhar para outro ponto de vista, em uma clara demonstração de democracia de fachada (pois esse “outro” lado está aqui para ser refutado mesmo). Olhemos para a realidade, isso que gostamos de denominar de realidade, aliás, um grande pólo oposto ao que convencionamos chamar de “amor”. Amor e realidade não são vistos como partes de uma mesma mente sã. Pois bem, eu gostaria de saber porque diabos a realidade geralmente é apresentada como algo “duro”, cruel, sardinhas tentando escapar dos anzóis. Porque reivindicamos sempre esta realidade mórbida, e fora disto tudo é uma “viagem” , romantização, show da Xuxa? E pior, muitas vezes colocamos a questão como “a” realidade, aquilo que “é” real. Pior ainda, sempre achamos que sabemos mais sobre o que é a “verdadeira” realidade mais do que os outros. Não nos damos conta de que a realidade pode estar sempre acrescentada de um “e”, de múltiplas facetas que não significam uma exclusão ou a “síntese de múltiplas determinações”. E também de que nos colocarmos em uma posição hierárquica para explicá-la, como eu ser mais estudado, ou eu ser mais velho, ou eu ser mais pobre, ou eu acordar mais cedo, ou eu ser mais pós-moderno, não significada muita coisa além de eu gostar de enfiar o dedo no nariz e você de coçar a bunda.

Exceto, óbvio, quando o confronto é de classes.

Estas invenções que preenchem o ato de olhar ao nosso redor, enunciadas pelo cara muitas vezes mais conservador, mesquinho, machista, cretino e arrogante do mundo, podem significar que a nossa potência criativa vai muito além das novas repetições e crenças “concretas” que permeiam o nosso dia-a-dia. Estes espaços em branco na nossa leitura talvez não existam porque ainda somos incapazes, e que no futuro seremos, de alcançar este todo, mas sim de que eles podem ser nossa forma de simplesmente não pensar que só podemos ir para trás ou para frente, mas ir embora, e, com um pouco mais de criatividade, além (esse final é parte de outro aforismo do cara, não lembro qual).

- Cara, você é um imbecil. Acabou de ficar dando palpite sobre um filósofo e arrancou um trecho de sua obra sem levar em conta a posição que ele ocupa no conhecimento ocidental. Além disto ainda não falou exatamente sobre o que ele estava dizendo, mas deturpou de uma maneira piegas, com coisas do tipo “podemos fazer isso”, ou “podemos pensar aquilo”. Seu pseudo-intelectual de merda!
- Desculpe, é que eu estou habituado a mentir.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Das antigas (já?)

23 de abril de 2008.

Não quis apelar para livros didáticos, não quis recorrer a materiais tradicionais de cursinhos. Procurei uma maneira mais aprofundada de fazer um “recolhimento de informações prévio” daquilo que buscava apreender. Encontrei livros na biblioteca da universidade, afinal, livros de biblioteca de uma universidade são de respeito...Pesquisa feita, idéia geral daquilo que eu imaginava que deveria ser apreendido pelos alunos bem definida, pormenores selecionados, tempo cronometrado, possíveis dúvidas espinhosas previstas. Resumo com aquilo que deveria ir para quadro na mão fui até a Restinga, uma hora e vinte de viagem, tempo para revisar, até mesmo para memorizar. Depois de uma apresentação muito feliz a primeira aula tem que ser ótima, tem que ser melhor que o ano passado.

“Boa noite pessoal! Sejam todos bem-vindos!” Um pouco de ansiosidade, como eu começo? Ah! A chamada, um refúgio muito a calhar. Posso tentar já memorizar o nome deles. Feito o fulano (a)!-Aqui! e vamos lá então. O que eu tinha pensado para iniciar? Ah sim. Aquela questão de partida. “Pessoal, o que é na opinião de vocês o trabalho?” Silêncio que me fez o centro de sua atenção neste momento. O que houve? OK, eu sabia que isso não é diretamente alguma coisa útil para o vestibular, mas pode suscitar um ponto de partida. Vamos pessoal, se mostrem para que nós possamos dialogar. Muito genérico, meio vazio, quem sabe eu deva dar este impulso. Mas bem, será que eu tenho o direito de direcionar a visão deles para alguma coisa desta forma? Mas quer saber? Isso não é doutrinar, não é direcionar, educação me parece que implica também em posicionamento, afinal de contas eu também tenho que me mostrar, sou um sujeito que está em uma posição de assumir responsabilidades por aquilo que eu estou fazendo nesta sala de aula. E lá foi: blá...blá...blá...

Tentei não exagerar, talvez tenha falado um pouco demais, mas bem, de certa forma deu certo. Alguns balançaram a cabeça em sinal de uma suposta concordância, outros interviram na forma de fala, outros não estavam nem aí. Bom, podemos tentar agora entender o tal do conteúdo. Ia colocar algumas coisas no quadro e olhei para o resumo, para o giz, para o quadro. Droga, acho que tem muita coisa aqui, vou ter que diminuir. Não quero passar a aula inteira escrevendo nesse quadro e deixar minha garganta seca de giz. Escrevi alguns conceitos, a cada vez que movia o giz e riscava a lousa percebia um movimento cadenciado, meio militar. Todos copiando. Ops, uma pergunta: - Psôr, o que ta escrito ali? - Ali onde? - Ali embaixo da servidão coletiva...

Discussão no meio da aula. Fomos longe, bem longe. Estava com uma sensação boa, mas de repente: e o conteúdo? O vestibular! Não me preocupei na hora, mas olhei para o relógio, mais da metade da aula se passara. Olho no resumo. Por que raios fui colocar tanta coisa nesse resumo? “Pessoal! Vamos voltar aqui para o processo, olhem aqui como funcionou a escravidão...”. Mais alguns minutos de exposição, silêncio e uma atenção meio sonolenta por parte dos meus companheiros. Mas o que será que está se passando na cabeça dessa gente? “Pessoal! Vocês estão entendendo?” Alguns tímidos movimentos de afirmação com a cabeça. Não me convenceram.”Pessoal! Vocês podem falar, eu não tenho uma bola de cristal e muito menos sei ler mentes.” Constrangimento na sala, uns olham para os outros e surge um discreto “é que nós nunca tínhamos ouvido falar disto antes.”

Bom, nunca ter ouvido falar disto antes não é a mesma coisa que não ter entendido nada. Tinha aplicado uma semana antes um trabalho escrito e julguei os resultados relativamente bem positivos. Talvez devesse ter prestado mais atenção nos conhecimentos prévios que eles tinham a partir de uma outra estratégia. Pensamentos malignos se passaram pela minha mente, vou aplicar uma avaliação agora, quero ver se vocês não estão me enganando. Mas o que é isso? Não é essa a idéia de educação popular. Pensei no Paulo Freire, com sua barba, seu óculos e suas palavra que falam de amor (eu sempre gostei disto, um texto usado na academia que fala de amor). O que ele diria se estivesse vendo isto agora? Vou confiar neles, avaliação deve ser feita para um acompanhamento, para que possamos realmente perceber se eles estão aprendendo, não para satisfazer meu sadismo.

Estas pessoas têm potencial, tem vontade própria, tem o direito de achar essa aula chata e não participarem. Se elas não participarem onde está o problema? Comigo? Com eles? Com o maldito vestibular? Com o ensino precário? Com as relações de produção? Estou preocupado em dar uma aula decente e que eles realmente aprendam alguma coisa, assim como eu estou aprendendo muito com eles. Estou me baseando nisso, tentar conversar no mínimo de tempo que temos e confiar neles (pelo menos até conseguir pensar em uma melhor forma de avaliação, com a cabeça fria).

Enfim, aula terminada, meu casaco cheio de giz e conteúdo não vencido. Espero que eles tenham levado alguma coisa dali, do oikos grego, das discussões, dos momentos de indiferença, das risadas que demos, da minha não capacidade de falar e escrever no quadro ao mesmo tempo. Objetivo não completamente alcançado? Talvez sim, mas os momentos em que a aula fluiu e foi tomando um ritmo próprio, apesar da fuga dos conteúdos, me fizeram pensar que estes espaços devem ser proporcionados em qualquer tipo de aula e que, em uma hora e meia, a maneira como se da a aprendizagem passa por processo um pouco fragmentado com idas e vindas – atenção e dispersão. Dispersão esta que pode estar ligada a uma questão individual no meio da aula. Seria utópico (ou arrogância da minha parte) pensar em uma reflexão que surgiu através da aula? Isto seria aprendizagem para a vida, e não é este um dos objetivos da educação popular? Se por acaso não for nada disto, me consolo com o que disse Pierre Clastres: “Há destinos piores!”. E vamos pensar em outras maneiras.

Manifesto pela vida real

Eu, sinceramente, prefiro tomar no cu a ter que carregar essa responsabilidade. A barriga está ali já há uns malditos vinte anos, e deverá permanecer ali por talvez mais vinte. Custe o que custar. Nem que, para que isso aconteça, todas as relações tenham que girar ao redor dela. O antigo rei na barriga e a atual ditadura da barriga. Ela tem que permanecer sempre dura, resistente a tudo e a todos. Podem dar porrada à vontade! Ela agüenta. Ela não conhece a bebida alcoólica, ela não conhece qualquer substância degenerada. Ela só conhece aquilo que mantêm, não o que transforma. Talvez sentimentos também não são questões que passem por este modelo da barriga contemporânea.
Barriga de grávida: Também tão valorizada no nosso tempo. Barriga deformada e a barriga ideal. Contradição? Dialética? Estrutura do capitalismo?
Enfim, isso acaba não interessando. O que interessa mesmo é que a flacidez está no mundo. No dia-a-dia as barrigas flácidas andam pra lá e pra cá, se movem em ondas através das diferentes atividades do ser humano. Na corrida para pegar o ônibus, na respiração e na hora do sexo. Existem barrigas flácidas para todos os gostos.
As barrigas-modelo são puro photoshop (ou outra tecnologia que eu desconheço). As barrigas-cópia transitam pelo imaginário e tentam ordenar o mundo. As barrigas-simulacro, desordeiras, estão na vida das pessoas. Seria correto dizer que as barrigas-simulacro produzem mais vida do que as barrigas-cópia? Certamente elas estão ali mais frouxas e flexíveis, podem criar mais que as barrigas-cópia, reféns de uma eterna juventude e imobilidade. Questão orgânica, bio-filosófica-política.
Se olharmos mais de perto as barrigas-simulacro (podemos dar um beliscadinha também, afinal, são macias e fofinhas), veremos que existe a grande possibilidade de percebemos que elas são reais. Pura realidade material. Não são algo a ser necessariamente trabalhado para que se transforme no sujeito consciente e universal. Elas vão resistir! Elas têm potencial revolucionário do jeito que são.
Aí é que está. Se a diferença vem primeiro, se a partida do modelo ideal e das cópias são pura metafísica, os simulacros podem nos mostrar que a vida acontece, mesmo que não alcancemos aquilo sempre esteve no futuro. Eu não gosto de tomar no cu, e talvez também não goste da minha barriga-simulacro, mas não quero essa responsabilidade da barriga-modelo.