terça-feira, 10 de agosto de 2010

Lendo o tal Nietzsche

“- Assim como atualmente um leitor não lê todas as palavras (e muito menos as sílabas) de uma página – em vinte palavras ele escolhe uma cinco ao acaso, “adivinhando” o sentido que provavelmente lhes corresponde -, tampouco enxergamos uma árvore de modo exato e completo, com seus galhos, folhas, cor e figura; é bem mais fácil para nós imaginar aproximadamente uma árvore. Mesmo nas vivências mais incomuns agimos assim: fantasiamos a maior parte da vivência e dificilmente somos capazes de não contemplar como “inventores” de algum evento. Tudo isso quer dizer que nós somos, até a medula e desde o começo – habituados a mentir. Ou, para expressá-lo de modo mais virtuoso e hipócrita, em suma, mais agradável: somos muito mais artistas do que pensamos. – Numa conversa animada, com freqüência vejo tão nítido e bem delineado o rosto da pessoa com quem falo, segundo o pensamento que ela exprime, ou que acredito ter evocado nela, que esse grau de nitidez ultrapassa em muito a força de minha visão – então a sutileza no jogo de músculos e na expressão dos olhos deve ter sido inventada por mim. Provavelmente a pessoa fazia outra cara, ou talvez nenhuma.”

Nietzsche. Além do bem e do mal. Aforismo 192.

Não pretendo entrar na questão da crítica à modernidade alicerçada por Nietzsche e valorizada mas do que nunca, me parece, atualmente. O que em trechos como este chamam a minha atenção está em seu caráter de inspiração e potencia que ele pode despertar.

Seja na área que for, na educação, na história, na borracharia, acredito que colocamos em prática esta capacidade inventiva sugerida pelo bigodudo. Muitas vezes queremos negá-la, amordaçá-la ou mascará-la de várias formas através dos nossos métodos, da nossa seriedade, da nossa preocupação. Outras podemos passar anos a fio não percebendo que ela está ali, agindo ou implorando para tal.

Pensemos no amor. Sabemos hoje, depois de tanto conhecimento acumulado, de todo um legado de homens que sempre se preocuparam muito mais com a humanidade do que com suas próprias cuecas, que o amor não existe. Não existe por si só, pode ser só um contrato para o acumulo de bens ou divisão da falta, pode ser a maneira mais simples de satisfazer necessidades biológicas sem recorrermos toda vez aos rituais culturais que podem ser longos (Bukowski já diria que ás vez é como escalar uma montanha), pode ser por alguma questão psicológica ainda não bem resolvida (não entendo muito sobre o assunto), como a busca pela mãe ou o pai, pelo pênis da mãe ou o útero do pai, algo assim.

Enfim, pode ser tudo isso e mais muitas coisas que toda a vontade de saber produziu ao longo do progresso da civilização (aposto que as mulheres na pré-história não eram presas por mostrarem os seios em público e nem que isto pudesse provocar um aumento nas estatísticas de estupros). A questão é que nós inventamos o amor. Sim, ele é uma produção da nossa cabeça e não existe pairando por aí através de um anjinho sem pinto que atira flecha nas pessoas. Mas, isto significa que não existe? Isto não pode significar justamente que estamos dando toda uma cor e significado para nossas vidas que não tem sentido nenhum (isto é fato, a vida não tem sentido, ou, como diria Raul, “eu sei que a vida não é uma resposta”). Isto não significa que estamos sendo artistas e criando um sentimento que produz manifestações, inclusive, biologicamente? Eu não sei de muita coisa, mas isto, mesmo que das maneiras mais clichês que existem, pode ajudar a ultrapassarmos a clássica dicotomia natureza-cultura de uma maneira muito singela, como um abraço, um plano (mesmo que nunca colocado em prática), uma briga, uma trepada daquelas... Às vezes pode bastar que potencializemos esta capacidade de “mentir”, de “artistar” a realidade.

Mas, sejamos justos. Vamos olhar para outro ponto de vista, em uma clara demonstração de democracia de fachada (pois esse “outro” lado está aqui para ser refutado mesmo). Olhemos para a realidade, isso que gostamos de denominar de realidade, aliás, um grande pólo oposto ao que convencionamos chamar de “amor”. Amor e realidade não são vistos como partes de uma mesma mente sã. Pois bem, eu gostaria de saber porque diabos a realidade geralmente é apresentada como algo “duro”, cruel, sardinhas tentando escapar dos anzóis. Porque reivindicamos sempre esta realidade mórbida, e fora disto tudo é uma “viagem” , romantização, show da Xuxa? E pior, muitas vezes colocamos a questão como “a” realidade, aquilo que “é” real. Pior ainda, sempre achamos que sabemos mais sobre o que é a “verdadeira” realidade mais do que os outros. Não nos damos conta de que a realidade pode estar sempre acrescentada de um “e”, de múltiplas facetas que não significam uma exclusão ou a “síntese de múltiplas determinações”. E também de que nos colocarmos em uma posição hierárquica para explicá-la, como eu ser mais estudado, ou eu ser mais velho, ou eu ser mais pobre, ou eu acordar mais cedo, ou eu ser mais pós-moderno, não significada muita coisa além de eu gostar de enfiar o dedo no nariz e você de coçar a bunda.

Exceto, óbvio, quando o confronto é de classes.

Estas invenções que preenchem o ato de olhar ao nosso redor, enunciadas pelo cara muitas vezes mais conservador, mesquinho, machista, cretino e arrogante do mundo, podem significar que a nossa potência criativa vai muito além das novas repetições e crenças “concretas” que permeiam o nosso dia-a-dia. Estes espaços em branco na nossa leitura talvez não existam porque ainda somos incapazes, e que no futuro seremos, de alcançar este todo, mas sim de que eles podem ser nossa forma de simplesmente não pensar que só podemos ir para trás ou para frente, mas ir embora, e, com um pouco mais de criatividade, além (esse final é parte de outro aforismo do cara, não lembro qual).

- Cara, você é um imbecil. Acabou de ficar dando palpite sobre um filósofo e arrancou um trecho de sua obra sem levar em conta a posição que ele ocupa no conhecimento ocidental. Além disto ainda não falou exatamente sobre o que ele estava dizendo, mas deturpou de uma maneira piegas, com coisas do tipo “podemos fazer isso”, ou “podemos pensar aquilo”. Seu pseudo-intelectual de merda!
- Desculpe, é que eu estou habituado a mentir.

Um comentário:

  1. inspiração, potência, invenção. vejo isso na tua escrita e por consequência nas tuas ações cotidianas; este interessante "pseudo-intelectual de merda" só tende a provocar ainda mais teu poder criativo fazendo de ti, cada vez mais, um homem "além do bem e do mal"

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