sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Rosa-sei-lá-o-que

Ela até que era uma mulher bonita. Talvez não tenha dado sorte com as coisas que tem que vestir. Aquela bermuda rosa-sei-lá-o-que, afinal, não se sabe se a cor clareada é por estar desbotada e gasta ou se é esdrúxula de nascença mesmo devido a um defeito em alguma máquina chinesa que a fez. Mas enfim, ela era de certa forma bonita. A bermuda não, mas se buscarmos o lado bom da vida como os profetas contemporâneos adoram anunciar para encher mais seus bolsos, a bermuda traz alguma coisa de boa. Acentua as curvas, talvez por algum defeito na costura, sei lá, mas parece que aquele modelo não é 37, nem 38 e nem uma das quase infinitas possibilidades entre os dois: ela foi feita para aquela pessoa. Enfim, imaginando uma imagem em preto e branco podemos nos vislumbrar com uma cena de um cinema amador, mas belíssimo.

Não é só da bermuda que devemos falar, derivada de uma questão de classe. Temos algo de biológico no ar. Não somente pelas curvas que se acentuam (resultado não só da biologia, mas de exercícios que mais adiante comentaremos), mas pelo fato da genética. Antigamente poderíamos lidar com questões de linhagem de sangue, hoje podemos nos contentar com a genética. Não se assustem, não é uma questão de clonagem, afinal, só a clonariam se fosse para encher uma fábrica nos cargos mais baixos, mas para este problema temos a sagrada robótica. É a roleta dos genes mesmo. Nasceu ali, e não na família daquele que defeca opiniões sobre a pobreza nos maiores jornais do país. Não sejamos injustos também, este nascimento, neste lugar, neste tempo, pode não ser o pior destino, mas que poderia ser melhor, isso poderia.

Ela vive a vida. Dá um jeito. Este corpo meio cor de cuia com algumas acentuações também causa problemas. As pessoas podem ser cruéis. Algumas delas muitas vezes se colocam como bons samaritanos dignos de uma honra mafiosa quando outras pessoas que tem aquilo entre as pernas estão em uma situação delicada. Ela chegou, já, há muitas vezes se culpar por ter nascido com isto. Pesado, assunto pesado. Mas é a vida, se toca em frente.

Não teríamos como pensar nela sem perceber o delicado equilibrio que há no seu dia-a-dia. Sim, equilíbrio. Falta isto agora, falta aquilo depois. O malabarismo não termina só ai. O dia inteiro é uma oscilação: entre os gritos, choros e risadas. Deslocamento também de espaço. A cidade é mais pequena se comparamos com um estudante que vai até a sala de aula, volta para casa e se afoga nos livros. O Equilíbrio pode se dar, então, quando se tem um espaço para respirar: daqui a meia hora vai surgir aquilo. E se espera. Por incrível que pareça todo este fluxo da rotina se dá mais por estática do que por qualquer outra coisa. Dor nas pernas, por caminhar e por esperar de pé.

E tem aquele cara. Gritaríamos “Jesus Cristo!” se ele ainda estivesse na moda. Ele (não Jesus, o outro) é um dos motivos do porque acreditamos que vida não tem nenhum sentido. Ele passa as horas ali, acocado como um macaco velho, lendo as notícias de esporte em jornais de dias que não fazem nenhuma diferença. Não esperando como ela, por soluções que visam manter o equilíbrio, mas simplesmente por existir como uma massa de carne cheia de pelos que solta um liquido denso pelos poros e tem resquícios das evacuações corporais pelos panos que são muito piores que a bermuda rosa-sei-lá-o-que. Simplesmente não da pra entender porque a distancia física entre os dois durante suas vidas é pequena. Dividir os bens? Só se fossem bens da falta que tudo faz. Sexo? Já comentamos sobre as curvas. Chantagem? Por favor,isto requer um pouco de inteligência,e a única coisa que esse cara faz é ler sobre esportes.

Em alguns dias, a situação ficava mais feia do que o de costume. Exatamente nestes momentos que este relacionamento ganhava voz. Não algo no sentido de um canto lírico, mas entonações bem mais ondulatórias do que aquilo que sai das fendas das placas tectônicas. Ela dizia que ele não fazia nada, ele só sabia dizer que ela dizia coisas demais (afinal, como mais ele pode se defender? O cara lê páginas de esporte nos jornais). Todo este rancor, a única maneira em que o casal criava nomes àquilo que estavam fazendo juntos, mostrava sua face em forma de cobranças vorazes; do dito e o não dito; do feito, do não feito e o a ser feito; daquilo que guardamos mas que nunca achamos ser o momento certo de mostrar, e que vem à tona justamente quando esquecemos que estava lá.

E o confronto terminava ai: o retorno a um silêncio pacífico que só era cortado pela indisposição dela em prosseguir, pela falta de capacidade dele em se preocupar e pela confusão da cidade. Ela de braços cruzados, ele acocado. E a cidade ali, como um cenário passivo neste ponto de vista. Dentro desse mundo dos dois, e após tanto tempo, uma música soava dentro da cabeça dela, e de repente ela não ouvia mais os ruídos, não percebia mais os olhares estranhos das pessoas. Não sentia mais toda a indiferença e hostilidade (se é que existe, neste caso, como diferenciar um do outro). Assim como era invisível a tudo isto a seu redor, pagou na mesma moeda.

Logo depois, esta música passava a ter letra, e nestas vozes se criavam personagens, e estas personagens criavam cenários. Engraçado, mas toda esta composição era muito parecida com aquele mundo que girava, tão agressivo e indiferente, ao seu redor. E toda esta enorme orquestra, pouco a pouco, construía um roteiro de uma repetição. Aquilo que ela conhecia como realidade se duplicou na sua imaginação. A fuga tornando-se prisão. Ela abriu novamente os olhos e alguém estava sua frente, uma senhora simpática com dificuldade para andar que queria comprar uma das antenas de TV. Ela respirou fundo e ouviu novamente todos os sons da cidade, percebeu todos os olhares, sentiu todo os cheiros (inclusive aquele que emanava do líquido denso que sai pelos poros daquele cara acocado). A sua bermuda rosa-sei-lá-o-que estava um pouco mais desfiada. Esta era sua vida. Mais uma vez que ainda não foi desta vez que enlouqueceu.

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